quarta-feira, maio 06, 2009

A últimas das sobreviventes...

Morreu Bárbara Ganhão, a menina do olho azul, a últimas das sobreviventes do Terramoto de 1909, em Benavente. Faria no dia 9 deste mês 106 anos, mas Deus achou que já tinha vivido e contado tudo e chamou-a a si ontem, dia 05.05.2009.

Tinha apenas cinco anos, naquela tarde de 23 de Abril, quando ouviu "um grande estrondo. E a casa caiu em cima de nós".
Recorda ao pormenor o que sucedeu antes, durante e depois do sismo, de 6,7 graus na escala de Richter, que causou 30 mortos e 38 feridos, destruiu por completo 40% das cerca de mil casas da vila e danificou as restantes. Só uma ficou intacta.
Enquanto conta a história, os seus olhos azuis vão ganhando uma nova vida, como se estivessem outra vez a ver tudo o que se passou há 96 anos. "Uma vizinha da minha mãe foi-lhe pedir para ir com ela à quinta onde o pai era caseiro. A minha mãe disse que não saía de casa, porque tinha lido no Borda d'Água que ia haver um abalo de terra pelas cinco da tarde", lembra Bárbara Ganhão.
Mas depois acabou por ir, com a pequena Bárbara, a vizinha e as duas filhas desta - uma com seis anos e a outra mais nova. "Fomos pela estrada do Miradoiro. Quando lá chegámos, a vizinha pediu dinheiro ao pai dela, que era caseiro e estava a regar o campo. Ele disse para irmos à casa do caseiro buscar figos", lembra Bárbara.
E foi quando as cinco já estavam lá dentro, pouco depois das 17.00 - como a mãe de Bárbara dissera -, que se "ouviu um grande estrondo e a casa caiu em cima de nós", disse, fazendo um gesto largo com as mãos.
"Eu gritava de lá de baixo, a chamar o pai da vizinha Ó senhor Júlio, nós estamos aqui. Ele ouviu e pediu a uns homens com umas enxadas para nos tirar dali. Fizeram um buraquinho para eu poder respirar e um deles disse para os outros: 'Já estou a vê-la. É uma menina de olhinho azul.' Depois foram tirando a terra e as pedras e desenterraram-me", recorda.
Debaixo dos escombros, não restava mais ninguém com vida "Coitadas, elas quatro ficaram logo todas esborrachadas, porque lhes caíram em cima os barrotes e as pedras. Só eu é que escapei e não parti a cabeça nem nada. Só fiquei com as pernas doridas. No campo, abriram-se bocas de lume e saía de lá areia e conchinhas."
Quando voltou, reparou que "a vila estava toda tapada com pó. Muitas casas caíram e as que ficaram em pé estavam todas arruinadas. A minha só rachou, mas só voltámos para casa três anos depois, quando a arranjaram".
Lembra que "um carro puxado por burros foi buscar os corpos delas quatro e levou-os para uma vala aberta no cemitério, onde enterravam as pessoas todas".
À volta da vila montaram tendas e cobertas para as pessoas pernoitarem e depois "foram fazendo barracas de madeira com telhado de zinco, onde as pessoas passaram três anos até a vila ser arranjada", contou esta sobrevivente.
Desde esse dia, Bárbara Ganhão passou a ter "um medo terrível de terramotos. Ainda hoje tenho". Actualmente vive com a filha, numa habitação recente, também em Benavente.
Das edificações que resistiram ao terramoto e ainda se mantêm, poucas restam, porque algumas foram entretanto demolidas para dar lugar a novos prédios. De pé continuam apenas a câmara municipal, a Igreja da Misericórdia e a habitação onde a pequena Bárbara vivia com a sua família, o número 68 da Rua Luís de Camões. Actualmente ninguém mora lá e a casa está à venda.
Segundo informações diponibilizadas pelo Museu Municipal de Benavente, para a reconstrução da vila ribatejana foram realizados muitos peditórios a nível nacional. Uma dessas iniciativas partiu do Diário de Notícias e deu origem à construção de um bairro com 14 casas que recebeu o nome do jornal e foi inaugurado em 1912. Ainda lá estão as casas, entretanto restauradas. O jornal O Século fez uma casa, que já foi demolida e deu lugar a um prédio.
Os mesmos registos consideram ter morrido pouca gente, porque a maioria das pessoas estava a trabalhar no campo. Depois do terramoto seguiram-se réplicas durante meses. E houve muita fome, porque os fornos ficaram destruídos e não se podia cozer pão.
Qualquer dia só restarão estes registos para contar a história, porque entre a população já quase ninguém o sabe fazer.
Sentados em bancos de jardins, dois grupos de septuagenários conversavam, quando a equipa de reportagem do DN os interrompeu para saber se algum deles ainda se lembrava do terramoto.
"Não. Não sabemos de nada, porque ainda somos muito novos. Não somos desse tempo. Ouvimos algumas pessoas contar que caíram as igrejas e mais umas coisas", responderam dois deles.
Apontando para o fundo da rua, um deles aconselhou "O melhor é irem ali ao lar de idosos, que é capaz de ainda haver alguém mais velho que se lembre disso."
E havia mesmo. Muito enrugada, toda vestida de negro e aconchegada num cadeirão, Rita Marques, de 99 anos, ainda se lembrava de alguma coisa, "mas pouca, porque nessa altura só tinha dois anos". Recorda-se de "andar a brincar e a virar as pedras da igreja matriz, que caiu toda aos bocados".
Quando a terra tremeu, "estava em casa com a mãe e o irmão, de dois meses. A minha mãe fugiu de casa comigo e esqueceu-se do bebé. Quando voltámos pouco depois, a casa tinha caído. Ele continuava deitado na cama, com pedras e barrotes caídos à sua volta. Mas ele não foi atingido por nada. Foi milagre", contou.

DN, 01.Novembro.05




Bárbara Ganhão não vai poder voltar a contar a história. Já ninguém pode. Era a única sobrevivente viva. Restam agora as entrevistas feitas a esta mulher com uma memória prodigiosa, que no dia seguinte ao terramoto beijou a mão ao rei D.Manuel II. Fora isso, a benaventense teve uma vida normal. Casou aos 17 anos, nunca se afastou de Benavente e foi pela primeira vez a Lisboa com 22 anos. Para fazer pouco mais de 40 quilómetros teve de usar três meios de transporte: carroça, barco e comboio. Enfim, uma aventura. Porém, a maior da sua vida foi mesmo ter fintado a morte no dia do Terramoto. A "finta" deu-lhe mais cem anos de vida. Bárbara faria 106 no próximo sábado. Para tristeza dos seus companheiros no lar da terceira idade, não chegou lá. Deixou-nos uma certeza: quando passarem 101 anos do Terramoto o DN já não vai ter ninguém para "chatear".

O corpo de Bárbara Ganhão esteve em câmara ardente na Igreja de Benavente e o funeral realizou-se hoje às 14h30, tendo sido sepultada no cemitério local.


Até sempre, Bá!...

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